2011 - Texto do 1º Encontro de Observadores de Aves



A favor da avifauna açoriana e contra a sua inclusão na lista de espécies de carácter cinegético.

Face à alarmante falta de protecção legal existente para grande parte da avifauna açoriana e face ao recente propósito de incluir espécies de aves nativas na lista das espécies de carácter cinegético nos Açores, através da Proposta de Decreto Legislativo Regional - Regime Jurídico da Protecção da Biodiversidade, os assinantes deste documento querem manifestar a sua preocupação sobre:

● A necessidade duma maior protecção legal das aves nativas dos Açores.
● A manifesta falta de estudos científicos que caracterizem adequadamente a avifauna açoriana.
● O enorme retrocesso que seria, em termos ambientais e sociais, a inclusão das aves nativas na lista de espécies cinegéticas da região.
● A incompreensível falta de valorização do componente ornitológico da nossa região, considerada como um dos lugares de maior interesse a nível europeu.
● A falta de visão política que não permite o desenvolvimento dum turismo verde e sustentável baseado no crescente sector económico da observação de aves, juntamente com outras actividades ligadas à natureza.

Assim, a possível inclusão de aves nativas (espécies nidificantes, visitantes regulares ou visitantes ocasionais) na lista das espécies de carácter cinegético dos Açores leva-nos a manifestar os seguintes pontos:


A falta de estudos sobre a biologia das espécies e os seus habitats.

Existe um grande desconhecimento sobre a caracterização genética dalgumas das espécies aqui consideradas e as implicações que isto pode ter na conservação da biodiversidade. Também não está devidamente estudada a importância da região nas migrações de determinadas espécies. Muitas vezes estas aves chegam aos Açores em reduzidas condições físicas, aproveitando a estadia na região para ganhar força e energia para continuarem a sua migração. Assim, não se conhecem aspectos concretos destas espécies, como a sua condição corporal em relação ao momento da migração, as características da sua dieta no arquipélago ou as deslocações que realizam entre as zonas de repouso e de alimentação.

Para além disso, todas estas espécies ocupam na nossa região habitats muito sensíveis e restritos, nos quais qualquer alteração pode ter grandes consequências sobre o estado de conservação do ecossistema e sobre as medidas necessárias para a sua protecção.

A deficiente protecção legal das espécies da avifauna açoriana.

Nenhuma das espécies proposta na lista de espécies cinegéticas tem atribuída uma categoria de conservação na região biogeográfica dos Açores.

Isto é especialmente preocupante pelo facto de que, atendendo aos critérios utilizados internacionalmente para a atribuição destas categorias, parece provável que algumas destas espécies venham a ser qualificadas como espécies ameaçadas e a ser incluídas nalguma das três categorias correspondentes: criticamente em perigo, em perigo ou vulnerável. No entanto, não existem e continuam ainda sem existir os estudos científicos necessários para atribuir uma categoria e um estatuto de protecção a estas espécies.

A falta de estudos sobre o impacto da caça sobre as espécies e os seus habitats.

Existe um grande desconhecimento sobre até que ponto a pressão da caça é nefasta sobre as espécies incluídas nesta lista. Especialmente devido à reduzida quantidade de indivíduos destas espécies que ocorrem na região e ao facto de ocuparem habitats muito localizados e de muito reduzida dimensão.

Sendo estes habitats tão localizados e escassos, a pressão dos caçadores pode levar estas aves a fugir constantemente das suas zonas de alimentação, de modo que podem não conseguir alimentar-se adequadamente ou mesmo morrer à fome. E esta pressão deverá afectar igualmente todas as espécies que ocupam esse habitat, mesmo não estando incluídas na lista das espécies cinegéticas, pelo qual existirá um claro impacto sobre a totalidade das espécies.

Importa ainda referir o impacto que a caça pode ter nas zonas húmidas devido à contaminação das águas com o chumbo existente nos projécteis. Esta contaminação é responsável pela doença conhecida por saturnismo, que afecta animais e pessoas.

O impacto das variedades e espécies exóticas.

No exercício da caça são habituais as introduções e largadas de espécies nativas e exóticas, nomeadamente do grupo das aves Galliformes, algumas das quais incluídas agora na lista de espécies cinegéticas.

As introduções de espécies exóticas são por norma proibidas, ainda que sejam permitidas algumas excepções para permitir determinadas actividades, como são certas modalidades de caça. No entanto, considerando as especiais condições geográficas dos Açores, a fragilidade dos seus habitats e das suas populações nativas, a introdução de espécies exóticas, com propósito cinegético ou outro qualquer, é altamente desaconselhável. Relembremos que a introdução de espécies exóticas é considerada a principal causa de perda de biodiversidade nos meios insulares.

Mas as largadas de exemplares de espécies nativas também podem ter um grave impacto sobre a avifauna açoriana. Isto é devido ao facto de os exemplares que são criados e libertados muitas vezes não pertencerem à subespécie ou variedade local da região. Trata-se com frequência de híbridos de diversas variedades ou mesmo de híbridos com espécies próximas. Por exemplo, no continente são frequentes as largadas de codornizes com exemplares que são híbridos entre a espécie europeia e uma espécie asiática. Ainda por cima, nos Açores é possível que exista uma subespécie nativa de codorniz diferente daquela que existe no continente. Assim, estas largadas podem causar graves problemas de hibridismo e de diminuição do património genético nas espécies nativas açorianas.

A grande dificuldade de identificação das espécies que podem ser consideradas cinegéticas.

Na lista de espécies cinegéticas estão incluídas algumas espécies em que a identificação, em especial da fêmeas, resulta ser extremamente complexa. Estas espécies são quase impossíveis de diferenciar de outras espécies que não estão incluídas na lista de espécies cinegéticas mas que também estão presentes regularmente nos Açores. Assim acontece com os seguintes pares de espécies: Anas platyrhynchos - Anas rubripes; Anas crecca - Anas carolinensis; Anas penelope - Anas americana; Gallinago gallinago - Gallinago delicata.

Ainda por cima, os machos de Anseriformes que chegam durante o período outonal aos Açores apresentam uma plumagem chamada de eclipse que é muito parecida à das fêmeas, tornando a identificação destas espécies ainda mais complicada.

Nalguns casos, como entre as espécies de narceja Gallinago gallinago - Gallinago delicata, a identificação só pode ser feita tendo os indivíduos na mão. E mesmo assim, estudos recentes comprovam que existe uma sobreposição de coloração que impossibilita uma correcta identificação, sendo necessário para isso estudos genéticos. Assim, pensa-se que na caça actual de narceja-comum (G. gallinago) metade das aves abatidas podem pertencer, na realidade, à outra espécie.

Tudo isto leva a que a lista actualmente proposta de espécies cinegéticas seja de impossível aplicação. A protecção de qualquer espécie da avifauna açoriana pode ficar gravemente comprometida no caso de ser permitida a caça duma ou várias espécies do mesmo grupo ou família.

A conveniente aposta económica no turismo de observação de aves.

O arquipélago dos Açores é uma região privilegiada para a observação de aves migratórias americanas e europeias, tendo sido observadas mais de 400 espécies nos últimos anos. Estes números situam os Açores como uma das melhores regiões europeias, talvez a melhor, para o desenvolvimento do turismo de observação de aves (birdwatching). Esta actividade lúdica está actualmente em franca expansão na região e atrai todos os anos centenas de visitantes de toda Europa. Prova disto é a notória presença de nomes de pessoas estrangeiras nas listas de registos ornitológicos da região.

Do ponto de vista económico, o turismo de observação de aves traz importantes vantagens à região por várias razões: 1) é uma actividade repartida por todas as ilhas do arquipélago, com alguma especial incidência no grupo ocidental, favorecendo assim a coesão económica; 2) acontece principalmente durante os meses de outono e inverno, fora da época alta turística; 3) o impacto no ambiente é reduzido ou mesmo nulo, podendo ser qualificada como turismo verde; 4) traz dinheiro de fora da região, que é injectado na economia das ilhas.

No entanto, a permissão da caça de espécies da avifauna açoriana é incompatível com a observação de aves. Com a actividade de caça direccionada para espécies com interesse de turismo ornitológico, nomeadamente algumas espécies migradoras e de ocorrência acidental, as aves ficam muito mais fugidias. E ainda pode colocar em risco a própria segurança dos observadores de aves.

Está por avaliar o impacto económico do turismo de observação de aves na região, que seguramente traz às nossas ilhas milhares de euros por ano. Investindo neste tipo de turismo, complementado também com actividades semelhantes como a observação de cetáceos ou o pedestrianismo, os Açores poderiam facilmente converter-se numa marca mundial de turismo verde. Os Açores é a região europeia com mais Reservas da Biosfera, pelo que faz também todo o sentido marcar a diferença pela protecção da sua biodiversidade.


1º Encontro Regional de Observadores de Aves nos Açores.
Ponta Delgada, 24 outubro 2011.