Aves incluídas na lista de espécies cinegéticas

Decreto Legislativo Regional n.º 15/2012/A
Regime jurídico da conservação da natureza e da proteção da biodiversidade

ESPÉCIES CINEGÉTICAS (AVES):

Anseriformes:
Pato-real (Anas platyrhynchos)
Marrequinha (Anas crecca)
Piadeira (Anas penelope)
Galliformes:
Codorniz (Coturnix coturnix)
Perdiz-vermelha (Alectoris rufa)
Perdiz-cinzenta (Perdix perdix)
Charadriiformes:
Narceja (Gallinago gallinago)
Galinhola (Scolopax rusticola)
Columbiformes:
Pombo-da-rocha (Columba livia)



ANSERIFORMES

A maioria das espécies deste grupo encontram-se nos Açores como visitantes invernais pouco frequentes ou raros, estando presentes sempre em números muito baixos. Pelo facto de terem escassos registos ornitológicos em todo o arquipélago, estas espécies são consideradas como raridades (espécies de ocorrência ocasional).

São referidos, no entanto, registos de nidificação para duas espécies: o pato-real e o pato-marreco. A nidificação do pato-real (Anas platyrhynchos) na região é escassa, pelo que a caça indiscriminada de indivíduos residentes e migradores poderá pôr em risco a população autóctone. A outra espécie, o pato-marreco (Anas crecca), era considerada nidificante nos Açores, mas deixou de o ser nos últimos anos, podendo ter contribuído para isso a pressão cinegética.

Em geral, a pressão exercida pelos caçadores sobre todas estas espécies de Anseriformes é particularmente grave, pois podem chegar a impedir a alimentação dos indivíduos nos habitats restritos que utilizam, provocando assim a morte indiscriminada de indivíduos de várias espécies.

Nenhuma das aves deste grupo tem atribuída uma categoria de protecção dentro do arquipélago. Mas, na realidade, as características que estas espécies apresentam nos Açores, com populações muito reduzidas e irregulares, desconhecendo-se a sua relação com populações continentais ou atlânticas, com a utilização de habitats de dimensões muito restritas, ocupando ecossistemas de carácter sensível devido à sua insularidade, coadunam-se grandemente com os parâmetros que levam a considerar uma espécie com a categoria de espécie ameaçada.

Para além disto, a lista actual de espécies cinegéticas resulta na prática de impossível aplicação no caso dos Anseriformes, pois existe uma real impossibilidade de identificar correctamente muitas das espécies pertencentes a este grupo. A identificação destas espécies representa um problema mesmo para os ornitólogos, particularmente no caso das fêmeas, mas também no caso dos machos durante o período outonal, em que apresentam a plumagem chamada de eclipse. Nos Açores, esta dificuldade é ainda maior devido à chegada dum elevado número de espécies americanas, muitas delas com grande afinidade genética com as espécies europeias e com as quais apresentam um grande parecido fenotípico.

Deve ainda acrescentar-se que estas espécies de Anseriformes, sempre presentes em baixo número, não podem ter mais que um significado puramente residual no âmbito da actividade cinegética. Pelo contrario, existe a nível mundial um crescente turismo de observação de aves (birdwatching) que atrai a muitas pessoas à nossa região [1] e para o qual este grupo de espécies é um dos principais atractivos. A protecção e conservação destas espécies, junto com o respeito pelos seus habitats, constitui assim uma grande mais-valia económica para a região, até agora pouco e injustamente valorizada.

Anas platyrhynchos – Pato-real

O “Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal” [2] assinala a espécie com a categoria DD (Informação Insuficiente) para os Açores. É considerada, com algumas dúvidas, como uma espécie nidificante no arquipélago.

Várias formas domésticas desta espécie têm sido introduzidas no ambiente natural dos Açores, pelo que se torna difícil determinar a origem selvagem ou doméstica de muitos dos exemplares observados. Assim, pensa-se que os registos de reprodução poderiam talvez ser devidos unicamente a indivíduos de origem doméstica.

A presença de formas domésticas poderá colocar problemas de hibridação à espécie selvagem, levando a uma perda da integridade genética da sua população. Também resulta preocupante a possível interacção entre indivíduos selvagens e domésticos, nomeadamente a formação de casais mistos (o emparelhamento acontece durante os meses invernais), pois esta situação pode levar à alteração de padrões migratórios nos indivíduos selvagens, impedindo-os de migrar.

Existe uma espécie muito parecida: o pato-escuro-americano (Anas rubripes), da qual existem 90 registos ornitológicos no arquipélago dos Açores [3]. Considerando a notória dificuldade para distingui-las, a inclusão duma destas espécies como cinegética implicaria na prática a inclusão de ambas espécies.

Anas crecca – Pato-marreco, marrequinha

O “Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal” [2] assinala a espécie com a categoria DD (Informação Insuficiente) para os Açores. Existem unicamente 124 registos ornitológicos desta espécie para todo o arquipélago [3]. A espécie era dada como reprodutora na região [4], mas não existem dados de reprodução nos últimos anos.

Existe uma espécie muito parecida: a marrequinha-americana (Anas carolinensis), da qual existem 128 registos ornitológicos no arquipélago dos Açores [3]. Considerando a notória dificuldade para distingui-las, a inclusão duma destas espécies como cinegética implicaria na prática a inclusão de ambas espécies.

Anas penelope – Pato-piadeiro; piadeira

O “Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal” [2] não assinala categoria para esta espécie, por considerar-se a sua presença no arquipélago como uma raridade. No entanto, face aos últimos registos ornitológicos, ultrapassando já a centena [3], deixou de ser considerada como raridade no ano 2011.

Existe uma espécie muito parecida: a piadeira-americana (Anas americana), da qual existem 137 registos ornitológicos no arquipélago dos Açores [3]. Considerando a notória dificuldade para distingui-las, a inclusão duma destas espécies como cinegética implicaria na prática a inclusão de ambas espécies.


GALLIFORMES

Entre as espécies de Galliformes que constam na lista de espécies cinegéticas estão duas espécies exóticas, a perdiz-vermelha e a perdiz-cinzenta, cuja presença nos Açores implica a sua prévia introdução no meio natural das nossas ilhas. A introdução de espécies exóticas é considerada uma grave ameaça para a conservação da biodiversidade e está proibida pelas leis e tratados nacionais e internacionais. No entanto, continua a ser permitida, de forma sempre questionável, quando existem alguns interesses para determinadas actividades económicas, como é o caso da actividade cinegética.

Deve considerar-se, no entanto, que no caso das ilhas e os sistemas insulares, a introdução de espécies exóticas reveste uma muito maior gravidade, pois neste âmbito é reconhecida como a principal causa de perda da biodiversidade. Assim, num ambiente insular restrito, sensível e de pequena dimensão como o dos Açores a introdução de qualquer tipo de espécie exótica é altamente desaconselhável.

Um problema semelhante se coloca em relação à outra espécie incluída na lista, a codorniz. Apesar de ser uma espécie considerada nativa, é frequentemente criada e libertada nos Açores com propósitos cinegéticos. Nestes tipos de largadas existe o enorme perigo de estar a introduzir uma variedade, raça ou subespécie diferente daquela que é nativa nos Açores. De facto, é frequente no continente a cria de codornizes de raças diferentes, e ainda de híbridos entre diferentes espécies, situação esta que facilmente pode repetir-se nos Açores. A introdução destes indivíduos, geneticamente diferentes da subespécie nativa, poderá afectar gravemente a sobrevivência e integridade genética da população nativa dos Açores.

É de salientar ainda que as largadas destas espécies ou variedades exóticas parecem ter pouco beneficio para a maioria dos caçadores da região.

Coturnix coturnix – Codorniz

O “Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal” [2] assinala a espécie com a categoria DD (Informação Insuficiente) para os Açores.

Nos Açores está descrita uma subespécie nativa (Coturnix coturnix conturbans) diferente daquela do continente (C. c. coturnix). A sobrevivência e integridade genética desta subespécie nativa poderá estar em causa devido às frequentes largadas com fins cinegéticos de indivíduos criados em cativeiro (no continente, por exemplo, já foram introduzidos híbridos de C. coturnix e C. japonica). No entanto, existem dúvidas sobre a autêntica origem desta subespécie nativa, não se descartando ser consequência de antigas ou históricas introduções de exemplares, pelo que esta espécie deveria ser talvez considerada exótica e não nativa dos Açores.

As populações selvagens desta espécie parecem ser bastante reduzidas e muito sensíveis à pressão cinegética. Isto tem motivado a declaração de reservas de caça para esta espécie nalgumas das ilhas açorianas, com o objectivo de permitir a recuperação das suas populações mais ameaçadas. Assim, para a Graciosa e o Faial foram feitos Decretos Regulamentares Regionais [5] proibindo a caça desta espécie num total de oito reservas parciais.

Alectoris rufa – Perdiz-vermelha

Espécie exótica cuja presença na região se deve à sua introdução com propósitos cinegéticos. Existem dados de que esta espécie poderia ter nidificado nos Açores [1]. Assim, existe o risco da perdiz-vermelha poder chegar a estabelecer-se na região, aumentando o número de espécies exóticas potencialmente invasoras.

Perdix perdix – Perdiz-cinzenta

Espécie exótica cuja presença na região se deve à sua introdução com propósitos cinegéticos.


CHARADRIIFORMES

As duas espécies de Charadriiformes que constam na lista de espécies cinegéticas possuem no arquipélago populações muito reduzidas em quase todas as ilhas. Para além disso, encontram-se geralmente associadas a um tipo de habitat, as turfeiras e outra vegetação húmida de altitude [6], que é muito frágil e cada vez mais valorizado do ponto de vista ambiental e científico, sendo já equiparado em importância à floresta laurissilva.

Gallinago gallinago – Narceja

O “Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal” [2] assinala a espécie com a categoria DD (Informação Insuficiente) para os Açores. No entanto, esta espécie ocupa habitats que apresentam geralmente uma grande fragilidade, o que motiva, por exemplo, que no território português continental a sua população nidificante tenha a categoria CR (Criticamente em Perigo).

Nos Açores, a população nidificante é bastante escassa, com um total de 278-418 casais em todo o arquipélago [7]. Nas diferentes ilhas, o número de casais nidificantes tem uma considerável variabilidade: 6-10 casais em São Miguel, 34-38 na Terceira, 2-4 no Faial, 85-88 no Pico, 180-193 em São Jorge e 30-34 nas Flores. A espécie não nidifica em Santa Maria e Graciosa.

A população nidificante desta espécie está em declínio nos Açores devido à perda de habitat, correspondente às zonas húmidas de altitude, como consequência do aumento das explorações agropecuárias de tipo intensivo [7]. A pressão cinegética é também considerada uma ameaça para a espécie [8].

A possível chegada durante os meses de inverno de indivíduos migradores desta espécie não está devidamente estudada [9].

Existe uma espécie migradora muito parecida no arquipélago: a narceja-americana (Gallinago delicata). Há suspeitas de que, na realidade, esta espécie americana represente uma parte importante da população invernal de narcejas do arquipélago [8]. Considerando a extrema dificuldade para distingui-las, quase unicamente possível com a ave na mão, a inclusão da narceja na lista de espécies cinegéticas implicaria, na prática, a inclusão também da narceja-americana.

Scolopax rusticola – Galinhola

O “Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal” [2] assinala a espécie com a categoria DD (Informação Insuficiente) para os Açores.

No arquipélago dos Açores, o habitat desta espécie está associado à vegetação arbórea preferentemente nativa [10,11]. Assim, a sua população tem seguramente sofrido um importante decréscimo devido à perda desse habitat, consequência da desmatação de algumas zonas, da eliminação de manchas de vegetação nativa e da chegada de plantas invasoras [7,10]. A pressão cinegética é considerada também uma ameaça para a espécie [8].

A fragilidade das populações desta espécie, devida à sua distribuição restrita e abundância geralmente baixa [10], tem levado a proibição da sua caça em diferentes ilhas, como São Miguel e São Jorge, por diferentes períodos. No entanto, noutras ilhas, como Pico e Flores, a situação da população poderia ser menos desfavorável [7].


COLUMBIFORMES

Existe um elevado desconhecimento sobre a situação e caracterização do pombo-de-rocha, única espécie incluída actualmente na lista de espécies cinegéticas.

Columba livia – Pombo-da-rocha

O “Livro Vermelho dos Vertebrados de Portugal” [2] assinala a espécie com a categoria DD (Informação Insuficiente) para os Açores.

No nosso arquipélago, é referida a existência duma subespécie (Columba livia atlantis) comum às ilhas macaronésicas, mas o seu estatuto nos Açores não é nada claro. Foram introduzidas numerosas formas domésticas desta espécie na nossa região, actualmente encontradas num estado semi-doméstico ou selvagem. Como consequência disto, é de esperar a existência duma forte hibridação entre estas formas domésticas e a possível subespécie selvagem. Existe portanto uma completo desconhecimento sobre a existência, situação e abundância da subespécie nativa, que a continuar a existir estaria gravemente ameaçada.

É ainda de salientar que, apesar das diferenças entre as duas espécies, a caça dos pombos-da-rocha poderia colocar alguns riscos ao pombo-torcaz (Columba palumbus azorica), subespécie endémica de grande importância para a conservação da laurissilva.




REFERÊNCIAS

[1] Filipe Barata. 2002. A avifauna aquática nas zonas húmidas da costa leste da Ilha Terceira – um contributo para a sua conservação (Tese de Mestrado). Universidade dos Açores, Angra do Heroísmo.
[2] ICNB. Livro vermelho dos vertebrados de Portugal. http://portal.icnb.pt/ICNPortal/vPT2007/Valores+Naturais/Livro+Vermelho+dos+Vertebrados/
[3] Birding Azores. http://azores.seawatching.net/
[4] Paulo A. V. Borges. 2005. Lista preliminar dos Nematoda, Annelida e Chordata terrestres dos Açores. Em: Listagem da Fauna e Flora terrestre dos Açores. (Eds: P. Borges, R. Cunha, R. Gabriel, A. Martins, L. Silva, V. Vieira). Direcção Regional do Ambiente e Universidade dos Açores, Angra do Heroísmo e Ponta Delgada.
[5] Decreto Regulamentar Regional: Nº 1/2000/A; Nº 10/2005/A.
[6] Cecília de Sousa Melo. 1998. Estudo da comunidade de aves terrestres da ilha do Pico e a sua relação com a estrutura da vegetação (Relatório de Estágio). Departamento de Zoologia e Antropologia, Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa, Lisboa.
[7] Carlos Pereira. 2005. Recenseamento de Galinhola Scolopax rusticola, de Narceja Gallinago gallinago e de Bufo-pequeno Asio otus no Arquipélago dos Açores. Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, Lisboa.
[8] Carlos Pereira. 2010. Aves dos Açores. Sociedade Portuguesa para o Estudo das Aves, Lisboa.
[9] Pedro Rodrigues, Gerbrand Michielsen. 2010. Observação de aves nos Açores. Editora Artes e Letras, Ponta Delgada.
[10] Ana Luísa Machado, José Carlos Brito, Vasco Medeiros, Manuel Leitão, Carla Moutinho, André Jesus, Yves Ferrand, David Gonçalves. 2008. Distribution and habitat preferences of Eurasian woodcock Scolopax rusticola in S. Miguel island (Azores) during the breeding season. Wildlife Biology, 14: 129-137.
[11] Ana Luísa Machado, David Gonçalves, Yves Ferrand, António Silveira. 2002. First data on Woodcock Scolopax rusticola breeding in Pico Island, Azores. Airo, 12: 35-44.


David M. Santos, 2012